Conexões, vulnerabilidades e a luta de mulheres neurodivergentes por reconhecimento

 

Connections, vulnerabilities and the neurodivergent women’s struggle for recognition

Conexiones, vulnerabilidades y la lucha de mujeres neurodivergentes por reconocimiento

 

e-ISSN: 1605 -4806

VOL 25 N° 112 septiembre - diciembre 2021 Monográfico pp. 32-54

Recibido 08-10-2021 Aprobado 28-12-2021

https://doi.org/10.26807/rp.v25i112.1813

Igor Lucas Ries

Brasil

Universidade Tuiuti do Paraná – UTP

igorlucas18@gmail.com

Bany Narondy Cabral Lima

Brasil

Universidade Tuiuti do Paraná – UTP

banynarondy@gmail.com

Angie Biondi

Brasil

Universidade Tuiuti do Paraná – UTP

angiebiondina@gmail.com

 

Resumo

Essa pesquisa observa interações comunicacionais em torno do movimento da neurodiversidade, sob a perspectiva de mulheres autistas e ativistas que enunciam suas lutas nas redes sociais digitais. Para a identificação destas demandas foi realizado um atento levantamento das publicações da autista Amanda Paschoal em sua página do site de redes sociais Facebook em 2019, que reúne postagens próprias e o compartilhamento de posts de outras ativistas que buscam o reconhecimento da neurodiversidade. O corpus teórico é constituído por teorias sobre vulnerabilidades e gênero (Ferrarese, 2016; Butler, 2016), normalização (Foucault, 1999), neurodiversidade (Singer, 1999) e pelos espaços conversacionais digitais de esfera pública (Marques, 2006) usados nas negociações civis em torno da causa. Observamos, enfim, como o pleito por reconhecimento do lugar das mulheres autistas tem sido exposto, questionado, revisto e não apenas superficialmente mencionado num ambiente fluido e variável como o digital.

Palavras-Chave:Ativismo; Autismo e Neurodiversidade; Mulheres; Vulnerabilidade.

Abstract

This research discusses communicational interactions around the neurodiversity movement, from the perspective of autistic women activists who enunciate their protests on social media. To identify these demands, we explored Amanda Paschoal’s publications on her Facebook page in 2019, which gathers her own posts and the sharing of posts by other activists seeking recognition of neurodiversity. The theoretical corpus consists of theories about vulnerabilities and gender (Ferrarese, 2011; Butler, 2016), normalization (Foucault, 1999), neurodiversity (Singer, 1999) and the public conversational digital spaces (Marques, 2006) used in civil negotiations regarding the cause of neurodiversity. Finally, we observed how the demand for recognition of the place of autistic women has been exposed, questioned, reviewed, and not only superficially mentioned in a fluid and variable environment as social media.

Keywords: Activism; Autism and Neurodiversity; Women; Vulnerability.

Resumen

Esta investigación observa interacciones comunicacionales en torno al movimiento de la neurodiversidad, desde la perspectiva de mujeres autistas y activistas que enuncian sus luchas en las redes sociales digitales. Para identificar estas demandas, se realizó una atenta encuesta de las publicaciones de la autista Amanda Paschoal en su página de la red social Facebook en 2019, que reúne sus propias publicaciones y el intercambio de publicaciones de otros activistas que buscan el reconocimiento de neurodiversidad. El corpus teórico está constituido por teorías sobre vulnerabilidades y género (Ferrarese, 2016; Butler, 2016), normalización (Foucault, 1999), neurodiversidad (Singer, 1999) y los espacios de conversación digitales de la esfera pública (Marques, 2006) utilizados en las negociaciones civiles en torno a la causa. Finalmente, observamos cómo el reclamo por el reconocimiento del lugar de las mujeres autistas ha sido expuesto, cuestionado, revisado y no solo mencionado superficialmente en un entorno fluido y variable como el digital.

Palabras clave: Activismo; Autismo y Neurodiversidad; Mujeres; Vulnerabilidad.

 

1. Introdução

A atuação dos indivíduos em redes tem se colocado como um importante fator na composição de visibilidade social, buscado encontrar espaços menos hierárquicos que, por vezes, não seguem formatos tradicionais de atuação, mas que conversam com as urgências e dinamicidades. As práticas políticas mais espontâneas e menos formais dialogam com o que compõe, portanto, a identidade em rede, mediando esfera pública e privada, expondo áreas do cotidiano de difícil reconhecimento por outras entidades ou instituições. Assim aspectos da subjetividade das pessoas relativos a sexo, crença, valores, etc. têm encontrado vias de manifestação com o uso de tecnologias digitais, a exemplo do movimento dos neurodivergentes, observado nesta pesquisa.

Relaciona-se, portanto, a necessidade comunicativa de elaborar uma semântica de sentidos compartilhados, a fim de sustentar enquadramentos comuns em torno da definição dos problemas, posicionamentos no campo de conflitos e de forjar ações que buscam soluções numa direção almejada. Como os indivíduos possuem múltiplos valores, interesses e experiências distintas, estes negociam suas interpretações em relação a semelhanças e diferenças, além de definir objetivos e estratégias para atingir as mudanças sociais pretendidas, e, para tanto, desenvolvem-se habilidades políticas e comunicativas a fim de sustentar a ação coletiva resistindo ao longo do tempo. Para promover e facilitar essa interação, apropriam-se de diversos instrumentos, incluindo a internet e seus aparatos digitais. Porém, pontuamos uma ressalva ao consideramos que é a utilização da internet enquanto ferramenta comunicacional e local de práticas comunicacionais que, de fato, pode construir sentido, traspondo as discussões sobre a tecnologia propriamente dita em favor das práticas de sociabilidade. Apoiamo-nos assim, no argumento de Hine (2005, p. 13) ao indicar que “o agente de mudança não é a tecnologia em si, e sim os usos e as construções de sentido ao redor dela”. Por isso, entendemos também os limites da nossa discussão que, por se tratar de uma noção privilegiada em acesso, pode desconsiderar outras vozes.

Na presente pesquisa, os vieses até então apresentados se tornam específicos, abarcando as demandas enunciadas em redes sociais digitais por mulheres ativistas que buscam a inclusão e o respeito às pessoas cujos cérebros trabalham de maneira atípica, ou seja, aos neurodivegentes. Tal denominação é dada aos sujeitos da neurodiversidade, movimento social que se intensifica principalmente pelo aumento significativo de sujeitos diagnosticados com autismo1 e outros transtornos neurológicos. Dentre seus pleitos e práticas exercidas em rede, as mulheres neurodivergentes parecem buscar visibilidade, participação política e um reconhecimento que resulte como consequência dos seus próprios enunciados, ou seja, indicam exercer um esforço para ocupar o lugar de fala de quem é mulher e autista, contrapondo padrões sociais qualificados até então apenas por agentes sociais de ordem técnica ou ainda por agentes de suas redes socioafetivas.

Buscamos, portanto, compreender como se processam certos movimentos e construções acerca da figura feminina neurodiversa que tem se expressado através de posts observados no Facebook. Questionamos como estas práticas comunicacionais, via redes sociais digitais, têm sido acionadas pelas próprias mulheres autistas de modo a possibilitar falas que enunciam as vulnerabilidades do modo diverso de ser e buscam quebrar sua invisibilidade. De que modo a mulher autista relata a si mesma e propõe outra perspectiva a respeito das construções normativas pautadas por pesquisas realizadas majoritariamente com homens? Quais seriam as demandas da mulher autista segundo sua própria fala? E, enfim, como elas mesmas se enunciam no espaço digital?

Observamos como o pleito por reconhecimento do lugar das mulheres autistas tem sido exposto, questionado, revisto, e não apenas superficialmente mencionado num ambiente fluido e variável como o digital. É possível notar que tais publicações funcionam como relatos das experiências e vivências destas mulheres, frutos das suas dificuldades e como atos de resistência, pois adquirem teor crítico e subjetivo sobre o próprio lugar daquela que se enuncia. Neste contexto, Rago (2013) define os relatos de si (récits de soi) como práticas emancipatórias, no sentido de que os sujeitos que relatam sua experiência a um interlocutor também se reinventam, pois costuram sua subjetividade a outras trajetórias, identificam conflitos, frustrações e vitórias utilizando a narrativa – o relato oral ou escrito – como ferramenta política. Assim, entende que relatar-se é uma experiência intensa, miúda e constante de construção e identificação de outros modos de ser, pensar, agir e existirem prol da autonomia e emancipação, sobretudo quando tratamos de mulheres.

Entendendo que os processos de comunicação, na sociedade, se desenvolvem imbricados nos mais diversos processos sociais, de ordem política, educacional, econômica, afetiva, etc.; e uma parte significativa do conhecimento sobre o fenômeno, por essa mesma razão, se encontra frequentemente engastada em estruturas significativas de construção teórica pelas disciplinas que estudam aqueles processos outros (Braga, 2016, p.88), buscamos delimitar o que pode ser apreendido a partir de materiais e situações que interessam a uma pesquisa em comunicação. No texto anterior “Comunicação, disciplina indiciária”, Braga (2008) nos apresenta um guia metodológico para entender a comunicação com uma busca de complexificação dos indícios do objeto, por mais que nos apoiemos em terias e áreas de conhecimento vizinhas, existe um alinhamento de análise para compreendermos o que de fato é um fenômeno comunicacional. O autor sugere um aprofundamento do método do estudo de caso, que se apresenta como uma forma de dar conta da diversidade da área.

Os estudos de caso, portanto, se prestam particularmente à produção de conhecimento nas condições atuais de constituição da disciplina. Encontramos uma variedade dinâmica de fenômenos que claramente solicitam uma apreensão de seus aspectos propriamente comunicacionais; e não dispomos de uma provisão suficiente de grandes regras básicas próprias ao campo, com formalizações teóricas transversais à generalidade do objeto, nem suficientemente consensuais, que permitam fazer reduções preliminares (Braga, 2008, p. 76).

Nossa pesquisa parte assim da análise de indícios de fenômenos não imediatamente evidentes, mas tais pistas e detalhes, quando tensionados com a teoria e o objeto, resultam na discussão científica. Buscamos não apenas descrever elementos comunicacionais, mas selecionar conteúdos com conexões entre si, para, organizando-os em levantamento, poder fazer inferências. Assim, de forma a reunir um elemento de análise que contemple as inquietações emergentes às perguntas da presente pesquisa, realizou-se um estudo de caso a partir do site de rede social digital Facebook da ativista Amanda Paschoal, página que reúne relatos-postagens próprios e de outras mulheres autistas. De maneira específica, objetivamos: a) descrever o material empírico por meio das postagens de Amanda Paschoal no Facebook, para demarcar qual o quadro temático que compõe o perfil da autora/ativista; b) perceber, através das postagens, como as experiências de Amanda se articulam às interações de outras usuárias/seguidoras autistas e se conectam às noções de gênero e neurodivergência; c) verificar de que forma este material configura relações dialógicas em torno do tema da vulnerabilidade, como uma possível categoria de análise que emerge no contexto comunicativo no perfil da rede social digital.

Ainda na direção do percurso metodológico verificado em Braga (2016), percebemos que devemos incluir esse espaço de observação como necessário nos estudos comunicacionais – uma vez que nos interessam os processos, mesmo segundo os quais os participantes sociais constroem e se engajam em suas relações interacionais. No entanto, o autor alerta afirmando que não se trata de ficarmos circunscritos à perspectiva interna do próprio episódio interacional. Mesmo porque, em nosso objeto, não estamos adstritos a uma cultura específica ou a um grupo em comunidade cujas regras e lógicas internas fossem estudadas como caracterizadoras apenas do grupo ou da cultura que queremos compreender. Tratando sobre neurodivergência, gênero e vulnerabilidades, nossa unidade de observação não se trata da “cultura ou o grupo – mas sim o episódio interacional e, a partir deste, tipos de episódio, definidos por seus processos comunicacionais, e não pelos objetivos sociais ou dos participantes” (Braga, 2016, p.88). Queremos, portanto, promover uma análise além da percepção integrativa das lógicas do episódio, perceber características e encaminhamentos que nos pareçam direcionados para o processo interacional – para sua manutenção ou ruptura; para negociação ou enfrentamento que culmina no encontro entre as diferenças presentes, em qualquer modalidade, de harmonização, tensionamento ou opressão. A busca de tais aspectos se volta para um entendimento crescente do fenômeno comunicacional, partindo das lógicas internas do episódio para alcançar processos historicamente transversais (Braga, 2016, p. 88).

Deste modo, durante os meses de acompanhamento das postagens, entre janeiro e dezembro de 2019, foram observados os 1.175 posts públicos (com visualização aberta e não restrita apenas aos seguidores permitidos pela detentora da página) do perfil de Amanda Paschoal (Tabela 1).

Amanda tem 27 anos, reside em Brasília – DF, é artista plástica, ativista, feminista, palestrante, conselheira do MOAB (Movimento Orgulho Autista Brasil), aluna de licenciatura em artes visuais pela Universidade de Brasília e autista. Na sua página de rede social digital, Amanda Paschoal escreve seus próprios relatos, histórias e replica textos de outras mulheres autistas que reavaliam, criticamente, seus lugares como sujeitos da neurodiversidade.

Tabela 1: Publicações de Amanda Paschoal em 2019 no Facebook

Publicações de Amanda Paschoal em 2019

Total/mês

Publicações gerais

Autismo e deficiências (nº absoluto)

Autismo e deficiências (%)

Mulher e violência de gênero (nº absoluto)

Mulher e violência de gênero (%)

jan/19

127

91

28

22%

8

6%

fev/19

100

65

26

26%

9

9%

mar/19

113

62

40

35%

11

10%

abr/19

111

48

57

51%

6

5%

mai/19

103

59

38

37%

6

6%

jun/19

118

48

46

39%

24

20%

jul/19

92

49

29

32%

14

15%

ago/19

60

27

25

42%

8

13%

set/19

122

40

61

50%

21

17%

out/19

73

40

19

26%

14

19%

nov/19

80

46

25

31%

9

11%

dez/19

76

43

21

28%

12

16%

Total/ano

1.175

618

415

35%

142

12%

Fonte: elaboração própria.

O conteúdo das publicações foi levantado e dividido nas categorias: (a) publicações gerais, (b) autismo e deficiências e (c) mulher e violência de gênero. Identificamos que, juntas, as categorias “b” e “c” representam 47% das publicações da página pessoal (TAB. 1). Para a análise selecionamos 16 posts que ilustram as demandas de Amanda e de outas mulheres autistas cujos textos foram compartilhados na sua página. As postagens podem ser compreendidas como elementos biográficos em um espaço que adquire teor testemunhal baseado no uso que as mulheres fazem destas postagens, a fim de indicar os desafios por elas enfrentados neste contexto de neurodiversidade e invisibilidade, e se envolvida em uma condição de vulnerabilidade, como ocorre com as mulheres com autismo.

2. Autismo e o enfoque da neurodiversidade

O autismo ou o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do desenvolvimento neurológico qualificada por uma alteração da comunicação interpessoal e pela presença de comportamentos repetitivos e estereotipados, percebidos desde a infância, e que coloca estes indivíduos em posições particulares e com conexões restritas. Assim, tanto os sujeitos com maior nível de comprometimento do transtorno, os autistas severos, quanto aqueles considerados autistas de alto funcionamento2, carregam em si traços comportamentais que os diferem e deslocam dos padrões socialmente esperados e, por vezes, intensificam os estigmas.

Goffman (1963, p. 5) ressalta que o estigma é “a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”, o que traz para si e seus familiares a convivência diária com atributos culturalmente definidos como depreciativos, estereotipados e que comprometem suas relações. O estigma, portanto, não está enraizado nos atributos do autismo, nas suas características ou sintomas, mas surge, com todos os seus prejuízos, da relação entre este transtorno e os diferentes significados históricos e culturais que o acompanham. Ou seja, nasce das classificações feitas pela sociedade, sobretudo, através dos meios de comunicação, seus produtos e discursos, que reforçam certas noções e ideias acerca do transtorno, em relação àquilo que o autismo deveria ser, denominada por Goffman como “identidade social virtual”, ao invés de ser considerada a sua “identidade social real”, ou seja, “a categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir” (Goffman, 1963, p.6).

Aproximando-nos do objeto empírico, mais especificamente do perfil pessoal da autista Amanda Paschoal, notamos que o autismo é posto em foco sob nova perspectiva: a busca pelo reconhecimento da neurodiversidade e a quebra da invisibilidade da mulher autista. Traz, portanto, reivindicações próprias daquele que tem autismo, ou seja, do próprio sujeito da neurodiversidade (Singer, 1999).

Em síntese, a socióloga australiana e portadora da síndrome de Asperger Judy Singer (1999) defende que a neurodiversidade é um termo que tenta salientar que uma “conexão neurológica” atípica não é uma doença a ser tratada e, se for possível, a ser curada. Trata-se de uma categoria de diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais, entre outras). Assim, os indivíduos autodenominados “neurodiversos” consideram-se “neurologicamente diferentes”, ou “neuroatípicos”, abordagem que abre possibilidades de aproximação deste enfoque aos de formação de identidade, comunidade e resistência, de redes de sociabilidade, bem como da constante negociação pública.

Contudo, a valorização e respeito às diferenças neurológicas não significam negar a realidade das deficiências e tornar a compreensão deste modelo social incompleta ou reduzida. Por outro lado, ampliar o entendimento de que o autismo e outras variações neurológicas (dificuldades de aprendizagem, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, etc.) podem ser deficiências, mas não falhas ou ainda uma “versão incompleta” de pessoas típicas, com a sua pessoalidade reduzida, surge como mecanismo de abertura de perspectiva. Este outro modo de ver, portanto, pode resultar na redução do estigma, em melhores acomodações do modelo neuroatípico e, enfim, na ampliação de uma vida significativa para estes sujeitos, nutrida pelo reconhecimento que emerge da verdadeira compreensão destes significados simbólicos. Trata-se de entender que, se o ambiente social não acomoda as necessidades e comportamentos de um indivíduo deficiente, este pode se tornar desativado socialmente. Enfim, pelo enfoque da neurodiversidade, “não patologizar” o autismo (Bailin, 2019) não significa acreditar que pessoas autistas não têm deficiências, mas não ter como premissa que suas diferenças neurológicas e comportamentais sejam sempre encaradas como problemas, como ilustra a publicação em que Amanda Paschoal (Figura 1) refuta a tendência de se apontar defeitos, comum nos discursos de quem espera que uma criança autista não-verbal fale.

Figura 1: Apontar defeitos

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)3

Ainda neste sentido, Amanda (Figura 2) posta um texto que questiona as pesquisas sobre autismo que comunicam ou induzem ao entendimento de uma possível cura do transtorno por analisarem, unilateralmente, os aspectos genéticos que o envolvem, além de sugerirem que um modo de ser deva ser normalizado (curado). Seu manifesto não aparenta indicar oposição às pesquisas e suas contribuições para a compreensão do autismo, mas sim reivindica a ampliação das abordagens que, pela perspectiva da neurodiversidade, devem ser correlacionadas entre si para um entendimento global das suas nuances, inclusive sociais, abrigando principalmente as contribuições que os próprios sujeitos neuroatípicos podem oferecer.

Figura 2: Visão da neurodiversidade sobre pesquisas em autismo. A “cura” do autismo.

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)4

Enunciar a resistência à normalização também aparece entre as publicações da autista. O incômodo nasce por meio dos apontamentos simbólicos de base, ou seja, das mais sutis repressões cotidianas que estão culturalmente enraizadas nos discursos sociais. Estas surgem, por exemplo, quando um adulto tenta privar a autorregulação sensorial de uma criança autista que gira constantemente um objeto (Figura 3) e o ensina que a brincadeira deveria ser diferente. Ou ainda quando são expostos às terapias normalizadoras (psicológicas e de cunho comportamental) que os forçam a oprimir seus comportamentos naturais em função do que é socialmente esperado (Figura 4).

Figura 3: Normalizar as brincadeiras dos autistas

Figura 4: Terapias normalizadas

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)5

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)6

Para tal sociedade normalizadora, Foucault (1999, p. 210) esclarece que a resistência precisa assumir outras formas e ir além da luta pelo poder estatal e jurídico, das leis e suas normas, em instâncias soberanas. Por outro lado, observa o caráter antijurídico dos mecanismos disciplinares (reguladores), afirmando que “as disciplinas ínfimas, os panoptismos de todos os dias podem muito bem-estar abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas” (Foucault, 1999, p. 210). Ou seja, resistir à normalização por parte dos neuroatípicos parece significar uma atitude de desafiar o que a norma impõe desde as situações sociais mais ordinárias e invisíveis, aquelas que parecem estar abaixo do nível de emergência percebido por parte daqueles que não vivem tais reflexos opressores.

Baseados em Foucault (2005) compreendemos, portanto, que estas novas lutas políticas são cada vez menos fundamentadas em reivindicações essencialmente pautadas na esfera dos direitos, do discurso jurídico e da tomada do poder estatal, mas sim, por outro lado, cada vez mais balizadas em lutas pela vida e pela liberdade de se reconhecer dignamente como “outros” em relação ao que é tomado por “normal”. É nesse sentido que as tanto as diversidades neurológicas, quanto as de gênero, raça, religião e outras se tornam foco de disputas políticas e resistem aos modelos que os privam do direito ao respeito às suas individualidades, o que tende a intensificar suas vulnerabilidades e, por consequência, sua exposição às violências.

3. Diálogos sobre vulnerabilidades e o reconhecimento

As discussões iniciais sobre neurodiversidade e normalização abrem espaço para o diálogo sobre vulnerabilidades que, neste capítulo, é apresentado sob as perspectivas de Judith Butler (2016) e Stelle Ferrarese (2011), cujas contribuições teóricas são relevantes para a análise do objeto empírico da pesquisa.

Butler (2016) trata a vulnerabilidade como um pressuposto especificamente ético. Para isso, parte da precariedade como algo inerente ao sujeito humano, ou seja, como aquilo que é constitutivo do sujeito cuja própria vida é precária e afetada por uma série de forças e condições socialmente impostas. Assim, a forma como essa vida se configura, vive e aparece no mundo, aglutinando naturezas biológica e social, constitui uma das grandes questões abordadas por Butler (2016).

Deste modo, sendo a vulnerabilidade algo que constitui o sujeito de natureza precária, poderíamos considerar que a precariedade de um autista se estabelece antes mesmo do seu diagnóstico como neurodivergente, assim como se constitui previamente em qualquer outro contraste de diferença ou modo de vida de um indivíduo. Porém, as questões que nutrem os conflitos tendem a surgir a partir do modo de aparição desses corpos, quando expostos, visíveis, cujos modelos culturais instituídos servem como reguladores e, quando em dissonância às categorias padronizadas e reconhecidas como ideais, podem promover um enquadramento seletivo e diferenciado, justamente por ser passível de interpretação, e, consequentemente, suscetível à violência.

Nesse ponto, estabelecemos uma linha teórico-complementar entre o movimento da neurodiversidade e a compreensão de vulnerabilidades em Butler. Isso porque a visão da neurodiversidade, abordada no capítulo anterior (Figura 2), considera esta como uma categoria de diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças, ou seja, como algo também constitutivo do sujeito.

Para Butler (2016) o não reconhecimento das potencialidades do sujeito, ultrapassando inclusive a vida ontológica natural e considerando a categoria social, surge como um risco aos diversos tipos de violência. Assim, para a autora, os movimentos de resistência passar a existir como uma espécie de construção das condições de ruptura para que ceda à rigidez desses enquadramentos.

Porém, Butler compreende o reconhecimento não como uma categoria específica de um indivíduo, mas sim como uma questão de inteligibilidade, ou seja, prevê a existência de enquadramentos que trazem no seu bojo aspectos que possibilitem o reconhecimento do outro, ou seja, como vidas que precisam de amparo em rede. Trata-se, portanto, de se produzirem pontos de ruptura aos esquemas normativos em seus diferentes contextos, não como uma mera observação, mas sim um exercício constante de desconstrução, entendimento e reconstrução de novos enquadramentos, admitindo-se as suas complexidades e o esforço de se enxergar além das camadas de visibilidade expostas (Butler, 2016).

Promovendo um diálogo entre Butler e Ferrarese, Marques (2018) afirma que as ciências sociais produzem noções como risco, redefinindo a vulnerabilidade como uma zona de susceptibilidades a múltiplas causas ao aproximá-la a uma lógica de acumulação de deficiências sociais. Esta instrumentalização prática da vulnerabilidade recai sobre a culpa da vítima, uma vez que ela se torna o centro e a partida desta situação. A medicina trata demandas singulares a partir da categorização de tipos de corpos e as políticas sociais designam certas populações como alvas de proteções e medidas de cuidado e assim trabalham para criar essas populações (Ferrarese, 2016, p.151). Assim, negar a vulnerabilidade e exaltar a invulnerabilidade tem se tornado objetivo maior das representações e enquadramentos sociais e midiáticos a serviço do capital e de um equilíbrio na correlação de forças que favoreça determinados sujeitos, grupos e instituições, enquanto relega outros ao esquecimento (Marques, 2018, p.13).

A vulnerabilidade seria, nessa perspectiva, algo externo e colocado num fluxo de fora – socialmente imposta – para dentro – do grupo categorizado como vulnerável. Ferrarese (2016) apresenta a noção ocidental de vulnerabilidade como este risco que pode ser calculado, e a intenção da calculabilidade estaria justamente vinculada ao controle de não se colocar exposto a tal posição. Pensar numa articulação entre as vulnerabilidades, nos faz observa a zona de tensão social na qual o termo se coloca: entre expectativas morais legítimas, compreendidas, desde o princípio, com uma capacidade de ação e reforço da ideia de dependência. No entanto, Marques (2018) abre a possibilidade de uma articulação com os estudos de Butler (2011) no que se refere à noção de vulnerabilidade. A autora o faz tendo em vista a localização de um indivíduo em um conjunto de relações marcadas por um campo de objetos, forças, processos vitais, instituições e seres que incidem sobre ele e o afeta de alguma maneira. A vulnerabilidade revela um modo relacional de estar no mundo que se constitui entre nossa passibilidade (ser afetado pelos acontecimentos) e nossa capacidade de agência, se aproximando ao conceito grego de devir. Ser vulnerável não pode se confundir com a produção de uma vítima incapaz e passiva, enfatiza a autora. É preciso permitir que o conceito oscile entre a passibilidade e a passividade, entendendo que ambas abrigam a contemplação e contemplar e um ato, um gesto que indica um trabalho em processo (Marques, 2018, p. 15). Deste modo, compreender que a vulnerabilidade se dá também a partir dos enquadramentos, abre-nos espaço para a análise das experiências vividas por estes sujeitos da neurodiversidade, vulneráveis, e como estas interferem nos âmbitos das suas demandas e configurações comunicativas, onde os relatos de si, argumentamos, podem ser observados como a elaboração de uma fala política de resistência ou de contraponto às enunciações estigmatizantes e moralizadoras.

Neste aspecto enunciativo e de mobilização em rede, em 18 de junho de 2019, na Comissão de Direitos Humanos (Senado Federal), Amanda Paschoal participa de debate e explica o significado do dia do orgulho autista. O resultado da sua fala é publicado em seu perfil (Figura 5). Na ocasião, esclarece que este orgulho surge no mesmo contexto dos diversos movimentos políticos (raça, gênero, etc.). Defende este orgulho como algo oposto à vergonha, um sentimento carregado pelo sujeito deficiente visto como quem é ou se faz de “coitado”, que seria de pior qualidade ou inferior, num esforço de exercer ruptura ao enquadramento atual e reconstruí-lo. Como exemplo, cita os movimentos repetitivos dos autistas que são, por vezes, associados como algo a ser consertado, algo ruim, que precisa ser corrigido e que deveria, portanto, causar vergonha. A vergonha seria o gatilho, portanto, para a busca por terapias corretivas que trouxessem ao sujeito autista um outro modo de agir em sociedade, comportamentos mais típicos, que diminuíssem sua vulnerabilidade e os olhares opressores e contraditórios. Da mesma forma, menciona a existência de terapias corretivas que devolvessem comportamentos masculinos aos garotos que apresentassem preferências por objetos ou brincadeiras tipicamente femininos. Nos dois exemplos, tanto as características dos autistas como as das mulheres são associadas às coisas ruins que deveriam, portanto, ser eliminadas, tidas como motivo de vergonha, como algo que se devesse suprimir.

Figura 5: Dia do orgulho autista

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)7

O orgulho significa, então, segundo Amanda, um ato de resistir a essa vergonha sem que os comportamentos autísticos retirem dos sujeitos neuroatípicos os seus direitos mais básicos de vivência em sociedade, de acesso ao suporte básico de qualquer ser humano, ou seja, a tentativa de se estabelecer um novo enquadramento. Enfim, este outro entendimento prevê autoaceitação, empoderamento e reconhecimento e quer quebrar a passividade daquele que olha e simplesmente aceita a situação do autista, mas não modifica seu modo de ver, de interpretar estas diferenças e as formas de enunciá-las.

Tal reivindicação assemelha-se ao argumento de Butler (2016) sobre o lutar por reconhecimento como um ato de transformação, ou seja, que prevê que uma vez reconhecido, o sujeito não permanece com o mesmo “eu anterior”, mas sim com o novo “eu reconhecido”, da mesma forma como acontece com quem reconhece. Assim, nesta questão que envolve o processo de transformação do outro que reconhece, este pode ainda se auto reconhecer como ameaçado pela necessidade de reconhecer aquele que interrompe sua compreensão, mesmo ilusória, de completude. Deste modo, Butler justifica que quando uma classe, ou grupo, que se sente plenamente segura em seus privilégios é ameaçada pela necessidade de reconhecimento do outro, há a possibilidade de reações adversas, conservadoras, racistas, preconceituosas, homofóbicas etc. Enfim, quando não só os sujeitos neurologicamente típicos podem chegar às universidades, se relacionar sexualmente, se casar ou ainda ocupar espaços políticos tendo tais atitudes reconhecidas legalmente, a classe neurotípica tende a reagir com estranheza. Tais circunstâncias dão a medida da complexidade dos processos de reconhecimento.

Enfim, ao final da sua fala, Amanda coloca a deficiência como um problema da sociedade e não um defeito de quem a carrega. Por isso, considera que “não existem deficientes inúteis na sociedade, mas sim uma sociedade inútil para algumas destas pessoas”. Sua citação, portanto, reitera a perspectiva acerca do relato de si como a elaboração de uma fala política que afirma sua legitimidade e reivindica reconhecimento. Deste modo, inclui que o dia do orgulho autista surge como forma de dar voz aos neuroatípicos e buscar mudanças na sociedade que os respeitem com todas as suas características, sem motivos para vergonha.

Noutra publicação em vídeo, desta vez em audiência sobre educação especial, Amanda parece exercer novo esforço em construir condições de ruptura para que ceda à rigidez desses enquadramentos sobre autismo e deficiências. Aborda, então, a desconstrução educacional e inclusiva anunciada pela PL3803/19, projeto de lei que prevê a separação dos autistas e outros deficientes do convívio social nas escolas, e se mostra contrária à sua aprovação (Figura 6). Defende, por outro lado, a necessidade de maior representatividade de pessoas com deficiência na elaboração e implementação de políticas públicas, com consultas estreitas e envolvendo ativamente tais sujeitos em comissões compostas majoritariamente por pessoas com deficiência, inclusive em cargos de liderança e decisão. Portanto, considera que as organizações de pais e profissionais, apenas, não são representativas para deliberar em prol destes deficientes. Por isso, contrária ao projeto de lei, refuta a ideia de se criarem salas específicas para surdos, outras para deficientes intelectuais, outras para autistas etc., segregando-os. Amanda pondera que todas as pessoas sempre apresentarão diferentes formas de aprender, sendo elas deficientes ou não, e para todas é preciso garantir os direitos à educação e diminuir suas barreiras. Exige o cumprimento das leis que amparam os deficientes e da própria constituição que prevê o acesso à educação por meio inclusivo, onde todas as crianças participam no mesmo ambiente e espaço. Amanda rejeita, portanto, como sujeito da neurodiversidade que ocupa o seu lugar de fala, o retrocesso apresentado pelo projeto de lei.

Figura 6: Inclusão de fala

Figura 7: Defesa das pessoas com autismo OAB/DF

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)8

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)9

Já em reunião ordinária da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB/DF), a conselheira da comissão Amanda Paschoal falou sobre a história da deficiência e autismo (Figura 7). Sua fala teve como objetivo destacar a importância de capacitar o judiciário sobre o autismo, visto a grande demanda de ações judiciais que buscam a manutenção dos direitos à saúde, educação e acesso às pessoas com deficiência, condições estas que, se negadas, amplificam sua situação de vulnerabilidade.

4. Ativismo feminino e neurodivergência: confrontos com a vulnerabilidade imposta

As intersecções entre autismo, gênero e descentralização da identidade nos transmitem que as vulnerabilidades não possuem uma origem única, mas resultam de uma rede complexa de múltiplas relações. Elas evidenciam uma maneira relacional de ser no mundo que se constituem entre a passibilidade (ser afetado pelos acontecimentos, mas também ser despossuído de si pelo outro que se aproxima) e a passividade (Marques, 2018). Dentro da categoria de movimentos sociais pautados em aspectos ligados não apenas a lutas de classe, mas sobretudo a lutas identitárias que transitam entre diversos pontos, verificamos que a interface dos Estudos Feministas e de Gênero passam a reconhecer e demandar uma abordagem multicategorial, considerando que as questões pautadas pelo ativismo feminista, a partir da segunda geração desse movimento, transcendem a exclusividade dos aspectos de gênero, onde podemos nos alinhar à luta por reconhecimento de forma múltipla. Mello e Nuenberg (2012) apresentam um importante aspecto congruente entre as pesquisas de gênero, queer e deficiência, que é o de questionar o construto do corpo como um dado natural que antecede a construção dos sujeitos. Recorrente na literatura feminista o argumento que evidencia a “dupla desvantagem” com que vivem as mulheres em relação à participação social, observamos sob o recorte do autismo a reflexão a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e renda.

Figura 8: Ser mulher com deficiência

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)10

Sobre a interseção entre machismo, xenofobia, racismo e outros tipos de preconceito, Amanda diz que estas violências normalmente acontecem com as mulheres autistas no campo da interação social sutil, das entrelinhas (Figura 8, 9 e 10). Explica que é justamente essa a dificuldade, própria do autismo, de se entender as entrelinhas, os não ditos, o que não é literal. Então, a mulher autista pode estar sofrendo violência ou assédio e nem perceber. Mello e Nuenberg (2012) afirmam que, embora existam similaridades nas formas de violências sofridas por mulheres com alguma categoria de deficiência ou neurodivergência, há também especificidades que merecem ser avaliadas. O isolamento social, a dependência de educadoras/es, cuidadoras/es e prestadoras/es de serviços, o grau de funcionalidade, a impossibilidade de defesa física de algumas pessoas e diversos outros impedimentos à percepção e à reação diante do abuso levam a situações de maior risco desse grupo social.

Figura 9: Ser mulher com autismo

Figura 10: Mulher autista

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)11

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)12

Em entrevista, Amanda diz que é necessário parar com a infantilização da mulher autista, a romantização nos discursos, como “anjinho”, “criança grande”, e se falar abertamente com elas sobre esses riscos, para que possam reconhecer as situações de agressão, de desconforto e, principalmente, conheçam o momento de dizer não aos abusos. Explica que culturalmente a criança autista é criada para agradar aos outros, pois são ensinadas que não podem mexer as mãos, pular ou manifestar outras estereotipias, para que, enfim, se pareçam “normais”. Desta forma, a criança e mulher, autista, desaprende a dizer não e se torna muito mais vulnerável aos abusos.

Ainda sobre a postura esperada e a docilidade exigida da mulher com autismo, Amanda apresenta o caso recente de Greta e da exposição pela qual a adolescente passou por não apresentar os padrões corporais de expressão esperados. O texto do post da figura 11 rebate as críticas feitas nas redes sociais digitais para as diferenças de comportamento entre as jovens ativistas Malala e Greta. De um lado, a postura nobre, de voz mansa, serena e com discursos contidos de Malala. Noutra perspectiva, o ar forte e desafiador de Greta, acompanhados de momentos de nervosismo excessivo (episódios recorrentes em autistas, como ela) que foram motivos de deboche.

Figura 11: Diferenças entre Greta e Malala

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)13

Ao se constituírem mutuamente e se retroalimentarem, os efeitos do duplo estigma potencializam a exclusão das mulheres autistas, processo que se complexifica ainda mais quando cruzado com outras categorias como raça/etnia e classe. De todo modo, o que se quer ressaltar aqui é que, se tendemos hoje a falar de masculinidades e feminilidades, é preciso ressaltar as diferenças e deficiências como componente do espectro de possibilidades dessas posições de gênero plurais (Mello, Nuenberg, 2012, p. 640) Neste aspecto, Amanda questiona o mito que define a proporção de 4 casos de autismo diagnosticado em meninos para 1 caso em meninas14 e, consequentemente, a invisibilidade do autismo feminino (Figuras 12 e 13). A exclusão sistemática das mulheres para as pesquisas científicas em autismo, além dos critérios serem limitados e definidos pelas observações feitas em meninos, ou seja, os critérios são excludentes e reforçam observações próprias do autismo masculino, com amplas dificuldades na identificação do autismo em mulheres. Desta forma, retardam-se os diagnósticos em mulheres que acabam, por vezes, sendo diagnosticadas no final da adolescência ou ainda na fase adulta. Defende, enfim, que existe a necessidade de ampliar a visibilidade do autismo feminino e que, para isso, é preciso conscientizar e informar profissionais sobre o autismo atípico, divulgar os traços e pautas presentes em mulheres e incluí-las nas pesquisas para que os critérios sejam menos limitados.

Figura 12: Invisibilidade do autismo feminino

Figura 13: O azul no autismo exclui

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)15

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)16

No que concerne aos aspectos da sexualidade, Amanda evidencia a realidade das mulheres autistas que têm sua sexualidade negada (Figura 14), sendo questionadas a responderem primeiro a demandas de uma condição imposta, e negligenciando ou deixando à margem seus outros sujeitos e atuações sociais. Assim, a ativista compartilha uma matéria que contém os relatos da esfera privada de pessoas com deficiência que vêm a público como uma forma de denunciar as barreiras impostas sobre o prazer corporal.

Figura 14: “Pensam que não transo”

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)17

Seguindo a análise, nos deparamos com outro conflito inerente à discussão entre os papéis femininos na esfera social. Além dos questionamentos sobre direito a reprodutivos e constituição da família, em paralelo observamos a sobrecarga a figura materna (Figuras 15 e 16). Nesse ponto, retomamos a ideia de risco adotada por Ferrarese (2016), quando verificamos a cobrança em torno de uma vulnerabilidade tida como algo evitável, culposo ou negativo.

Figura 15: A senhora se sente culpada

Figura 16: Mães culpadas

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)18

Fonte: Facebook.com/Amanda.Paschoal.3 (2019)19

Buscamos por meio da análise das postagens promover um levantamento sobre as possibilidade de avanço no campo de estudos feministas e de gênero, à medida que podemos articular as diferentes categorias de análise, como faz Amanda Paschoal, de forma orgânica, ao oferecer aos seguidores uma perspectiva pessoal de seus relatos nos fazendo-nos despertar para a transversalidade dos temas que perpassam o gênero e a neurodivergência como geração, classe, raça/etnia, orientação sexual, região, dentre outros.

5. Considerações finais

Essa pesquisa observou as interações comunicacionais em torno do movimento da neurodiversidade sob a perspectiva de mulheres autistas e ativistas que enunciam suas lutas nas redes sociais digitais. Notamos como o reconhecimento do lugar das mulheres autistas tem sido exposto, questionado, revisto, e não apenas superficialmente mencionado no ambiente digital.

Identificamos que a neurodiversidade enquanto movimento social, neste caso associado ao ativismo feminino enunciado em rede, acaba por adotar caráter educativo e, deste modo, utiliza as plataformas digitais de modo emergente, como um mecanismo de ampliação de visibilidade e que sugere a intenção de democratizar a atuação do próprio movimento. Assim, as noções de aprendizagem para os protagonistas parecem se redefinir, de certo modo, e atualizar, o que nos leva a constatar que a ideia de rede e tecnologias estão intrinsicamente aliadas ao ideal de mobilização e sociabilidades promovidas pelos movimentos sociais contemporâneos. Deste modo, compreendemos que um movimento social ou político assume formas diferentes de acordo com as pessoas que os constroem e os meios que estão disponíveis como suas ferramentas de luta e visibilidade. Portanto, as lutas que partem dos neurodivergentes e pelo feminismo acaba por surpreender com formas alternativas de engajamento político que não caminham pelas vias tradicionais da militância, mas buscam se estabelecer como formas de conquistar visibilidade para suas pautas por meio do uso de diferentes ferramentas de engajamento.

Consideramos ainda que as discussões teóricas sobre neurodiversidade (Singer, 1999) e normalização (Foucault, 1999, 2005) abriram espaço para o diálogo sobre vulnerabilidades e reconhecimento, apresentados sob as perspectivas de Butler (2016) e Ferrarese (2011), cujas contribuições foram relevantes para a análise do objeto empírico da pesquisa.

Aproximando-nos do perfil pessoal da autista Amanda Paschoal no Facebook, percebemos que o autismo é posto em foco sob a perspectiva da busca pelo reconhecimento da neurodiversidade e a quebra da invisibilidade da mulher autista e traz, portanto, reivindicações próprias do sujeito da neurodiversidade. Identificamos os esforços destas mulheres que exercitam um movimento de constante desconstrução e reconstrução de novos enquadramentos sociais para que suas vulnerabilidades sejam percebidas além das camadas de visibilidade até então expostas, visto que não possuem uma origem única, mas resultam de uma rede complexa de múltiplas relações. Os achados revelaram, dentre as principais demandas, pontos de múltiplas vulnerabilidades ao associar os papéis sociais da mulher e da deficiência, os contrastes de opiniões a partir dos padrões instituídos para a mulher neurodivergente e ativista, a invisibilidade do autismo feminino, a sexualidade supostamente negada ou deixada às margens, além da sobrecarga associada à figura materna.

Enfim, a análise da empiria sugeriu, ao nosso ver, que a resistência à normalização por parte dos neuroatípicos parece significar uma atitude de desafiar os enquadramentos normativos que resultam, desde as situações sociais mais ordinárias e invisíveis, em reflexos opressores e na busca por reconhecimento.

Compreendemos, contudo, que as trocas de experiências e de informações sobre o autismo exercidas, neste caso, por Amanda Paschoal, mas que atuam como conexões interativas entre outros atores em rede social online, apontam para a presença de espaços conversacionais digitais que são usados também para as negociações civis em torno desta causa. Assim, esta esfera pública, apresentada numa versão “virtual” (no sentido de estar conectada, online) desta zona discursiva, oportuniza uma formação complementar de opiniões sobre o autismo e da neurodiversidade, não como um espaço decisório por excelência, mas como um lugar de “conversação cotidiana” e de “discussões informais” que tendem a contribuir com a construção da opinião e potencialmente, com a deliberação (Maia, 2017). Neste contexto, Jamil Marques (2016, p.166) defende a compreensão da “noção de esfera pública virtual enquanto espaço preferencialmente propício à realização da conversação civil” e sugere que estes funcionam como “ferramentas de apoio para o aperfeiçoamento das instituições democráticas (sem abrir mão delas), possibilitando, por exemplo, a criação de uma gama de artifícios com o objetivo de fomentar a participação dos cidadãos”. A partir destas aproximações e conversações civis, decorrentes do interesse coletivo, podem surgir, consequentemente, a necessidade emergente de se levarem tais discussões aos espaços formais de debates deliberativos.

Deste modo, os atores sociais que atuam nas redes online, na “periferia” do poder institucional, ganham poder de influência quando discutem livremente sobre suas temáticas, mesmo que sua efetividade seja de pequeno alcance, além de contribuírem com uma participação civil mais forte e solidária. Marques (2016, p. 181) indica, portanto, que os debates empreendidos nas redes sociais online funcionam como um “reforço para os laços e espaços sociais já existentes, no sentido de abrir mais uma modalidade de comunicação que contribui para a formação discursiva da vontade”. Neste ambiente, percebe-se a oportunidade para a exposição de opiniões e a formação de arenas conversacionais sobre o autismo, feminismo, neurodiversidade e outras demandas em espaços mais civis, abertos à solidariedade, mais até do que puramente para a reivindicação.

Referências

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1 Entendido como uma condição do desenvolvimento neurológico, o TEA é caracterizado por uma alteração da comunicação social e pela presença de comportamentos repetitivos e estereotipados (Brasil, 2014). Na década de 90, as estimativas mundiais indicavam a prevalência de um caso para cada 2.500 crianças (Junior, 2010). Em 2014, estatísticas apresentadas pelo CDC (Center of Diseases Control and Prevention) indicaram a existência de um caso de autismo para cada 68 pessoas, ou seja, 1,47% da população mundial. Em 2016, a Organização das Nações Unidas divulgou a estimativa de que cerca de 1% da população mundial vive com autismo, o equivalente a 70 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, portanto, o percentual equivale a 2 milhões pessoas dentro do espectro (Junior, 2014).

2 Termo usado para caracterizar pessoas com autismo consideradas com maior “funcionalidade” ou “habilidades” em realizar atividades do cotidiano, para interagir ou tomar decisões. Existem basicamente três níveis de autismo, que variam de leve a grave. O de alto funcionamento, conhecido também como Transtorno de Asperger, pertence ao TEA de Nível 1 ou grau leve (Russo, 2018).

3 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2659108930839548/?d=n> Publicado em 15 jan. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

4 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2030135013736946/?d=n> Publicado em 20 jan. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

5 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2091061284310985/?d=n> Publicado em 03 mar. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

6 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2040766789340435/?d=n> Publicado em 28 jan. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

7 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2101756883241425/?d=n> Publicado em 11 mar. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

8 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2430187603731683/?d=n> Publicado em 26 set. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

9 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2599610286789413/?d=n> Publicado em 17 dez. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

10 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2099341870149593/?d=n> Publicado em 9 mar. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

11 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2514473345303108/?d=n> Publicado em 8 nov. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

12 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2552553541495088/?d=n> Publicado em 26 nov. 2019. Extraído em 15 dez. 2020.

13 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2610107042406404/?d=n> Publicado em 22 set. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

14 Estatísticas apresentadas pelo CDC apresentam elevação nos casos de autismo chegando a 1:68, em 2014, afetando mais pessoas do sexo masculino, na proporção de 4 homens para 1 mulher (JUNIOR, 2014).

15 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2098304303586683/?d=n> Publicado em 8 mar. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

16 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2132104363540010/?d=n> Publicado em 2 abr. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

17 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2203749453042167/?d=n> Publicado em 19 mai. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

18 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2106952416055205/?d=n> Publicado em 15 mar. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.

19 Disponível em: <https://www.facebook.com/100002214029232/posts/2380059765411134/?d=n> Publicado em 29 ago. 2019. Extraído em 15 jan. 2020.